Há algumas semanas, num dia soalheiro, junto à Marginal, um circo encarregou-se de me estragar o dia. Mas isso é o menos: um dia estragado, para mim, será sempre uma coisa relativa quando alguém tinha o dia – ou, melhor dizendo, os dias – muito mais estragados que o meu: um dromedário debatia-se com uma chocante falta de espaço, encafuado dentro de uma jaula, sem saber o que fazer ao longo pescoço. Uma vida sem sentido, enfiada mal e porcamente numa caixa. Como um brinquedo, mal arrumado dentro de uma embalagem pequena demais.
Chamem-me esquisito, mas eu tenho esta ideia de que não é suposto um dromedário estar em Carcavelos, ao pé da Marginal. Muito menos amarfanhado numa jaula da qual sai só à noite, para entreter os humanos da linha de Cascais.
Como este dromedário, há muitos outros animais – grandes, pequenos, selvagens, domésticos – transformados em bonecos de corda confusos e tristes, em circos espalhados pelo país. E sim, eu já fui criança e preparo-me para ser pai. Sei o quão apetecível é a perspectiva de estar perto de animais extraordinários e vê-los levar a cabo feitos impensáveis. Mas os verdadeiros feitos impensáveis destas criaturas são os que eles levam a cabo todos os dias nos seus habitats naturais, de onde, em muitos casos, estão a desaparecer. A maneira como sobrevivem, como se organizam, como levam as suas vidas em liberdade e sem que haja um ser humano desumano a obrigá-los a fazer habilidades à força do chicote.
Há tanta gente a queixar-se que Portugal é um país eternamente atrasado, que é um país que não anda para a frente; sem dúvida que tratar os animais desta maneira abjecta para fins de entretenimento em nada contribuirá para que progridamos. Pelo contrário: isso mantém um dos pés da nação firmemente plantados no passado. E não é num passado qualquer: a existência de circos com animais e a maneira como tanta gente continua a caucionar essa existência, sejam particulares ou empresas (supostamente modernas, sofisticadas e responsáveis) que continuam a apostar neles, por exemplo, para as suas festas de Natal, é algo que – não tenhamos ilusões e enfrentemos a realidade – faz de nós um país demasiado medieval para o século XXI.
Somos melhores do que isso. Se admiramos os animais ao ponto de querermos que os nossos filhos os vejam de perto e os adorem, ensinemos-lhes que adorar um animal, é ter a consciência de que não é suposto um elefante, um tigre, uma pantera viverem dentro de jaulas num terreno vago ali ao pé de um prédio de apartamentos.
Provemo-nos merecedores de sermos chamados de humanos e civilizados. Sensibilizemos quem tem o poder de impedir que a terrível exploração de animais continue a acontecer nos circos portugueses.
Os circos podem – devem – continuar a existir. Inúmeros circos bem sucedidos, espalhados pelo mundo inteiro, conseguiram provar que um circo sem animais consegue ser ainda mais extraordinário e surpreendente que um circo que segue a via mais fácil e depende deles, arrogantemente, para fazer dinheiro. Um circo sem animais consegue mostrar o engenho humano voluntário de mil e uma formas surpreendentes. E isso é muito mais interessante e estimulante, para adultos e crianças, do que continuar a exibir o engenho animal forçado.
Nuno Markl
Em: accaoanimal.com
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